Na banda de Cá
Fui desafiada a criar uma releitura de A Terceira Margem do Rio
de Guimarães Rosa, desafio aceito e feito, compartilho!
Na banda de Cá
- Não! Não, aceito não! Eu
sou a mãe. Isso não pode de ser, esse menino é meu! Não é dele e muito menos
dela!
-Mãe, é pedido de Gésio. É
Gésio quem quis assim. É pedido dele, o último pedido dele.
- Eu não vou! Se é assim
que fique assim, eles sendo tudo dela! Aquela maldita, desgraçada! Mas eu vou não!
- Mãe, Gésio morreu de
ficar lá, na beira do rio, gritando por pai, pedindo que voltasse, levando a
comida pra ele, todo dia. Já é desgraceira demais, vamos termina isso, mãe, e
seguir vida.
-Seguir vida como? Só o rio
segue, minha filha. A gente fica parado na vida que nem aquela maldita, a deriva no meio do mundo grande, sem rumo, repetindo os mesmos movimentos, sem destino
nessa vida, sem margem para sossego.
- Mãe, é o desejo de
Gésio. O último desejo, nós têm que cumprir.
- Eu não. Eu nunca quis
aquela maldita. Você era pequena não se alembra de seu pai, nem das coisas.
Haroldo era homem bom! A
gente se conheceu lá, na beira do rio, daquele rio, ainda moleque, criança de
tudo. Ele não figurava mais estúrdio
nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto!
O casamento foi formoso, meu pai e o pai dele fizeram de tudo para festa
ser bonita, vistosa, minha mãe e a mãe dele me arrumaram toda, fui a noiva mais
linda daquelas bandas.
Na lida do dia-a-dia era
eu quem comandava a casa, ralhava com você e com seus irmãos, ordenava as
tarefas.
- Eu me lembro mãe, mas
agora não é hora de lembra nossa história, é a hora de findar a de Gésio.
- Mas se deu que, certo dia, depois de nove anos de casados,
Haroldo mandou fazer para si uma canoa. Encomendou a maldita, eu desde do
inicio fui contra! Eu gritei, esperneei, eu conversei, eu tentei por juízo na
cabeça do homê: - Pra que conoa? Vai se propor a pescarias e caçada, agora?
Haraldo do céu! Como se não tivesse mais nada pra tu cuidar. Vai se dar a
vadiagens no rio.
Ele não me respondia nada, mascava o capim na boca e cuspia. Mal sabia
eu que o juízo já tinha se ido todo. Nossa casa, no tempo, ainda era mais
próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande,
fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira.
O dia em que a canoa ficou pronta.
...
Pequena, como para caber justo o remador, forte e arqueada em rijo,
própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos.
Tudo nós, parado perto do rio pra ver a maldita. Ele não me disse mais
nada! Eu parada na sombra da arvoré mais longe, menos curiosa que os pequeno.
Só vi quando Haroldo sem alegria nem cuidado, encalcou o chapéu e decidiu um
adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não
fez a alguma recomendação. O sangue me fugiu, as lágrima? Tinha não. - Cê vai,
ocê fique, você nunca volte!
- Mãe, essa história do pai convêm lembrar mais não. É Gésio que carece
de procedimento.
- “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?”
- Meu sangue voltou estourado, moleque danado! Não pensou o que ia ser
da mãe?!
Mas o homem ia só, botou a bênção no pequeno e mandou ele volta, pra
junto de mim. E foi se indo, entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a
canoa saiu se indo, rio a dentro, a longe. Gésio foi o que chegou mais perto
daquela maldita, acompanhou seu pai até a beira.
Ele não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a
invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre
dentro da canoa, para dela não saltar.
Tudo povo falando da gente, filha, pra lá das bandas do Armazém Central,
esse homem virou assunto de muitas léguas e levo o nome da família junto. Os
parentes, vizinhos e conhecidos nossos se reuniram, que vergonha, tudo povo pensando sem falar: doideira de
Haroldo.
- Mãe, não foi de tudo
assim. O povo falou também de ser pagamento de promessa; ou que, pai, quem
sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se
desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele.
- Você não se alembra, era
pequena. Depois de um tempo, o povo parou de falar e começou a observar nunca
se surgia de Haroldo voltar a tomar
terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio,
solto solitariamente. Eu só queria que a maldita levasse ele rio abaixo, pra
outras banda longe do meu olhar, do olhar desse povo tudo, que fosse embora,
mas tive de assentar que o homem estava ali no rio próximo, derivando.
- Mãe, ele podia volta,
pedi perdão, né? A senhora teria deixado, podia assentir dele vive no mesmo
sítio, num cantinho que fosse pra dá alegria pra nós, seus fios dele.
- Gésio é que já me
preocupava. Tava quieto por demais! Ainda por cima fugindo de mim. Um dia o
pessoal nosso experimentou de acender fogueiras na beirada do rio, enquanto
que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Eu? Fui não. Fiquei cá pra casa, cuidando de você que só fazia chorar de vontade de vê seu pai no alumiação da
fogueira. Seu irmão Luiz, é que veio me contar, de birra, porque o mais velho
não permitia dele ajuda no dever que tinha se posto; todo dia, dia-a-dia, de
rouba comida de casa e leva pro pai de vocês, punha nas pedras da beira do rio.
Fiz de conta que não acreditei. Agora, vejo que devia de ter ralhado com Gésio.
Mas não dava pra nega comida a quem compartilhei a vida. Deixava as sobras no
baixo, pro Gésio não fazer bagunça para pegar.
- Mas mais não fiz não!
- Mãe, o povo todo sabe,
foi a Senhora que incumbiu o padre que se revestisse, em praia de margem, para
esconjurar e clamar o pai, o dever de desistir de ser sombra a teima com rio. E
nada. Fez para medo, vir os dois soldados que mandou ele volta, em nome da presidenta que nem lá sabia da história de nós. Tudo o que não valeu de nada.
- Tinha que dá o de come e
educar vocês, já que sombra no rio não provê. Fiz o que pude mandei chamar meu
irmão, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandei vir o mestre, para os
meninos. Então esqueci e não dei mais conta de nada. Das chuvas de meio-do-ano,
aquele homem sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas,
e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver.
-Mãe, será que o pai não
pojava em nenhuma das duas beiras? Nem nas ilhas e croas do rio? Onde dormiu
seu tanto? Não adoecia? Não sentia falta da terra entrando entre os dedos dos
pés? Do ladrar dos cães na porteira quando chegava depois da labuta do dia? De
pesca, naquele rio mesmo? De prosear, sentia falta não?
- Em casa minha é
proibido! Não precisei avisar ninguém, de não fala sobre a maldita e seu pai,
as palavra se engasgava na goela antes de sair, se afogavam. Daí só emergia a
lembrança do vulto do rio.
- Mãe, nem festa do meu
casamento a Senhora não deixou.
- Não queria lembrança
dele. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa. Quem ia de entra com você na igreja? Melhor
só assinar o papel, na frente do homem do cartório mesmo. Não era bom chama a lembrança dele. Vê seu irmão, às vezes, algum conhecido nosso achava que ele ia
ficando mais parecido com seu pai. E eu ralhava: Gésio não é Haroldo! E agora,
ele me apronta uma dessa, não basta ter se ido antes de mim?! Isso não é certo
é o filho que enterra os pais, e em terra firme, com caixão.
- Mãe, o pai nem queria
saber de nós; não tinha afeto. Mas Gésio era diferente, por afeto mesmo, de
respeito, sempre que às vezes o louvavam, por causa de algum bom procedimento,
ele falava:
- “Foi pai que um dia me
ensinou a fazer assim...”
- Mãe, nós tudo sabia não
era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade.
- Sendo que se Haroldo
não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou
descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse.
Nós não tinha que dá procedimento! Mas você teve menino e você mesma entestou
que queria mostrar para seu pai a neta.
- Mãe, a gente veio,
todos, no barranco, foi num dia bonito, eu de vestido branco que tinha sido o
do meu casamento, ergui nos braços a Joana. A gente chamou, esperou. Nosso pai
não apareceu! Eu chorei, nós todos aí choramos, abraçados.
- Você foi a primeira a se
mudar, com seu marido, para longe dali. Levando minha única neta.
- Mãe, tá certa. Mas Luiz se a resolveu e se
foi, para uma cidade, na sequência. Os
tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos.
- E eu terminei indo
também, de uma vez, residir aqui com você, e a Joaninha. Mas porque envelheci,
porque num aquentava mais de saber que aquele rio tava próximo e que Haroldo
tava lá, bem no meio, dançando pra lá e pra cá com aquela maldita.
- Mãe, nós tudo mudou a
vida. Foi pra longe do pai e da canoa e do rio. Só Gésio quem ficou, nunca que
quis casar. Permaneceu com as bagagens da vida.
- Eu disse a ele que o pai
não carecia dele, nem de nada e nem de ninguém, eu sei, na vagação, no rio no
ermo — sem dar razão de seu feito.
- Mãe, mas ele foi atrás
Seja que, quando quis mesmo saber, e firme indagou, descobriu: que constava que
nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele
aprontara a canoa.
- Mas, agora, esse homem
já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais! Só as
falsas conversas, sem senso.
- Mãe, se lembra como por
ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não
estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado
que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado.
- Seu irmão virou homem de
tristes palavras. De que era que ele tinha tanta, tanta culpa? Se seu pai,
sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo.
- Mãe, Gésio apontava já
uns primeiros cabelos brancos. Sofria já o começo de velhice, esta vida era só
o demoramento. Tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de
reumatismo. Era pena, o que ele tinha do pai.
- Apertava o coração. Ele
estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou a culpada do que nem sei, de dor em
aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras.
-Mãe, ele foi tomando ideia só. Não é culpa da senhora, nem de ninguém.
- Sem fazer véspera! Ficou
como o pai? Perdeu o juízo? Endoideceu?
-Mãe, não! Na nossa casa,
a palavra doido não se fala, nunca mais se falou, os anos todos, não se condena
ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos!
- Mas lá ele foi. Eu sei, só
fiz que não sabia. Com um lenço, para o aceno ser mais. Esperou, seu pai
apontar no rio. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado
à popa. Estava ali, de grito. Chamou, umas quantas vezes. Minha filha, ele
disse, o que lhe urgia, jurado e declarado, sem se preocupa com nós tudo, sem
pensar em mim, sua mãe que lhe deu essa vida!
- “Pai, o senhor está
velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor
vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar,
do senhor, na canoa!...”
- E seu pai escutou. Ficou
em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado.
- Mãe, isso é história que
o povo conta.
- Mas ele foi não. Tremeu,
profundo, de repente: porque, antes, Haroldo tinha levantado o braço e feito um
saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! Mas ele não
podia... Era Gésio, por favor, arrepiados os cabelos, correu, fugiu, se tirou
de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que a ele pareceu vir: da parte
de além. E ficou pedindo, pedindo, pedindo perdão.
- Mãe, Gésio sofreu o
grave frio dos medos, adoeceu. Delirou! Sei que ninguém soube mais do pai. Agora
é tarde, e temo abreviar com a morte, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos,
que nesse artigo se cumpra o desejo dele!
- Pegar filho meu e depositar também numa canoinha maldita de
nada, e botar nessa água que não pára, de longas beiras: pra ele, rio abaixo,
rio a fora, rio a dentro — o rio levar mais uma parte de mim!?!
- Mãe, é pedido de Gésio.
É Gésio quem quis assim. É pedido dele, o último pedido dele. Nós tem que
cumprir.
- Eu vou
mais uma vez, última, na beira daquele rio.
E depois nunca que mais quero ouvir essa história de novo! Contada pela boca de mais ninguém.
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