Onde vivem as decisões?

PARTE 1

Donato passou a língua na ponta dos lábios, o gosto áspero de lápis mastigado fazia com que pensasse em pegar a terceira cerveja, mas o sino na igreja badalava quatro da manhã. 

 

Era tarde! Ou era cedo? 

 

Colocou os cotovelos sobre a mesa, apoiou a cabeça nas mãos e debruçou o corpo para frente, assim os olhos ficaram bem próximos da folha sulfite, apenas três linhas preenchidas em cada coluna e as cores fortes do giz de cera da sobrinha que após alguns rabiscos desistira do desenho e abandonara a folha no chão. 

 

Onde vivem as decisões? 

 

Ele não sabia. Pegou a folha do chão quando pisou em cima dela ao sair do quarto, ainda era uma da manhã, não tinha encarado o acontecimento como uma insônia, só deitou e não conseguindo dormir levantou, caminhou pela casa, foi no banheiro, e depois resolveu abrir a primeira latinha, sentou na mesa e colocou a folha na sua frente. 

 

Foi depois de uma hora que entendeu que não conseguiria voltar a dormir, as vozes das pessoas habitavam a sua cabeça, era como se a namorada argumentasse por cima do contra argumento do irmão que respondia a explicação do pai que era contra o apoio da irmã que distinguia da visão do tio. Então decidiu usar a folha, com o desenho inacabado da sobrinha, para fazer a tal lista de prós e contras. 

 

Donato não gostava de decidir, gostava da decisão, entende? Gostava de ser um homem de poucas palavras, de pronunciar o sim ou o não seco, sem os rodeios que fazem a língua secar ou ficar com gosto de lápis mordido. 

 

Pegou a terceira cerveja no congelador, em breve o irmão mais novo chegaria da madrugada na rua, bêbado e feliz, ou a mãe acordaria agitada pensando no café da manhã da família, e ele de cuecas sentado na mesa da cozinha, uma lata de cerveja na mão e uma folha desenhada com sua patética lista de "pode ser bom" e "pode ser ruim".  Não gostava de decidir. 

 

Às vezes pensava mesmo que decidia, sentia aquele calor no peito da certeza, mas até conseguir fazer sair pela boca, era obrigado a engolir a seco outro pedido de consideração de algum fator importante que alguém lhe trazia.



PARTE 2


Romeu entrou na cozinha e começou a contar mentalmente quantas latinhas de cerveja tinha entornado na noite, não era possível serem tantas, tampouco havia misturado com destilados. Então, não estava bêbado, seu subconsciente dançava ciranda, alegre, mas não estava tão afetado para criar miragens.


Mesmo assim, se aproximou pé ante pé da mesa da cozinha, ficou um tempo parado, olhando incrédulo: o irmão mais velho dormia sobre o desenho da filha, o lápis ainda  na mão, repousando.

 

O sino da igreja badalou seis da manhã, ele forçou a vista, entortou bem o corpo em uma posição idílica e leu aos sussurros: 

pode ser bom

- enfrentar as incertezas

- aprender a lidar com situações como essa

- escutar minhas vontades  

pode ser ruim 

- me expor demais 

- seguir o que os outros pensam 

- me iludir” 


Romeu deu um sorriso terno por sobre os ombros de Donato. Por um momento pensou em sacudi-lo e conversar; mas queria enganar a quem? Donato lá falava o que pensava!? Quis escrever uma mensagem, mas o irmão podia se sentir invadido. 


Chegou ao quarto com as pernas trançando, imaginando a filha brigando com o tio pelo roubo do desenho. E adormeceu pensando: quando mesmo a pequena voltava da casa da mãe… saudades! 



PARTE 3

Quando o sino badalou às oito horas, Mirna resolveu que era hora de cutucar Donato. Ela estava acordada a trinta minutos, já tinha lido a lista, já tinha comprado o pão e a água do café começava a ferver. 


Que menino! Sentiu pena do filho, pensou que talvez o cheiro do café coado pudesse ser um despertador melhor. Arrumou a mesa envolta dele, esticou a toalha, colocou os pães no prato, tirou a manteiga da geladeira e duas xícaras pequeninas. Sabia que Romeu, só se levantaria pro almoço, seriam eles dois, ela e Donato, naquela manhã.


Ela tinha conselhos a dar, poderia falar com algumas pessoas que considerava importantes para serem ouvidas nestes casos de indecisão marcar uma conversa. Só não ficaria de braços cruzados diante da busca do filho. 



FIM

 

Donato se espreguiçou longamente na cadeira. Um sorriso fino nasceu dos seus lábios, falaria se quisesse, se quisesse, gostava de ficar saboreando as palavras na boca, as certas, as escolhidas, criadas na assembleia mental que presidira. 


Deixou o mar encher as narinas, a areia fofa brincar com os dedos dos pés, espreguiçou uma segunda vez ainda mais longamente sentado na cadeira de praia; de onde estava via na beira da água, a sobrinha brincando com a vovó e o irmão, Romeu, caminhando com Regina na areia, indo sempre à esquerda, se afastavam...


Sorriu um riso leve, sentiu tanta culpa por usar o desenho da criança para rabiscar as decisões que comprou de reposição um pacote de 100 folhas sulfite e uma caixa de lápis de cor. Não sabia se o desenho havia feito falta, não sabia que fim a arte dos cálculos de danos e ganhos tinha tomado. Qual fim teria tomado?! Não importava, foi o certo a fazer. 


O certo a fazer! Seu riso, agora, transbordava. O “certo a fazer?” impressionava como o que era derradeiro na sentença não eram as palavras que a compunham, mas a acentuação final. Não são nem três palavras que tiram o sono, que dão dor de cabeça, que causam briga, é apenas um sinal: uma interrogação ou as reticências infinitas; o quão é difícil uma exclamação, um ponto final. 


Marina, noiva de Donato, mantinha um olho nele e outro no picolé de uva que saboreava. Qual era afinal a graça?! Sabia que o noivo pensava para dentro, mas o que tanto ria de pensar? Ela quem tinha sido contra no início, virou de lado, quando o companheiro decidiu trocar de emprego. 


O trabalho de jornalista de revista sobre agronegócio, não era ruim: salário razoável, era na área de formação, CLT ( o que é cada vez mais raro), mas que tema mais chato! Pesquisar e escrever sobre tipos de bois, veterinária e tratos, a parte de economia era interessante, entretanto, o tédio o consumia.   


Então, se o interesse era economia que trabalhasse com economia, ou política, ou esportes. Queria tentar, queria falar às pessoas, tocar corações e mentes.  


O céu  e o mar se encontram no infinito azul. Podia-se sentir a chuva que vinha pelo cheiro, pelos poros. 

  

Quando Romeu voltou, só, chamou Elaine, a filha, dona dos rabiscos da folha para almoçar. Era melhor sair da praia antes da revoada. 




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